VIRTUDES  E  RISCOS  DO  FEDERALISMO

MIGUEL REALE

 

                        Terminada a apuração dos votos da última eleição, com a vitória espetacular de Luiz Inácio Lula da Silva, verifico que tinha razão quando em artigo anterior (OESP, 28.9.2002) concluí a que, ante um cenário político multifacetado, devido ao baralhamento das posições ideológicas e partidárias, o eleitor não podia senão votar em razão das qualidades pessoais atribuídas a seus candidatos.

                   Os resultados finais do pleito eleitoral demonstram que, efetivamente, prevaleceram as opções de ordem personalista, como o demonstra a gigantesca diferença de sufrágios conferidos a Lula e os dados ao PARTIDO DOS TRABALHADORES nos diversos Estados da Federação, só capaz de eleger três governadores de reduzida expressão política.

                   A vitória, em suma, foi apenas da impressionante figura do presidente eleito, o qual somente influiu na votação para a Câmara dos Deputados e na de poucos senadores.

                   A bem ver, tivemos duas eleições paralelas, uma para os cargos federais e outra para os governos estaduais, nos quais prevaleceram fatores regionais, demonstrando que no Brasil o federalismo continua sendo uma realidade definitiva e decisiva.

                   Foi em vão que os líderes do PT tentaram impor a imagem de Lula na órbita das Unidades federativas, proclamando as vantagens que resultariam do fato de serem do mesmo partido o presidente e os governadores.

                   O que aconteceu em São Paulo e no Rio Grande do Sul confirma a força dos interesses e questões regionais, explicando por quais motivos a idéia federalista, no Brasil, já lança suas raízes no tempo do Império, de conformidade com a nunca esquecida confissão de Rui Barbosa de que fora federalista antes de tornar-se republicano.

                   Em São Paulo esse fator foi tão relevante que o governador Geraldo Alkimin teve, na terra paulista, mais votos do que Lula, tal a atenção dispensada pelos eleitores aos programas e obras de caráter local. Foi essa também a razão de ser do triunfo de Germano Rigotto, no Sul, pondo termo ao governo gaucho nas mãos dos petistas, assim como antes já decidira a eleição, em primeiro turno, de Aécio Neves em Minas Gerais.

                   A meu ver, a persistência do valor federalista é da maior relevância, compreendendo-se porque o § 4º do Art. 60 da Constituição de 1988 não permite que possa ser objeto de deliberação a proposta de emenda constitucional tendente a abolir “a forma federativa de Estado”.

                   Na atual conjuntura nacional, quando pairam dúvidas quanto ao efetivo abandono pelo PT de certas reivindicações que viriam comprometer o equilíbrio econômico-financeiro do País nos planos interno e externo, é benéfico o fato de não lhe caber o governo dos grandes Estados, sendo constituídos múltiplos centros autônomos de poder que poderão assegurar inédita experiência federativa, com maior correlação entre a União e os governos estaduais.

                   O prestígio pessoal de Lula não se estendeu, em suma, a seu partido, e isto poderá lhe assegurar maior independência, facilitando e legitimando o seu propósito de constituir um governo substancialmente nacional, o único capaz de resolver os grandes problemas que nos desafiam desde a Carta Magna de 1988. 

                   Não ponho em dúvida o compromisso de Lula com o valor da austeridade fiscal, exigindo o mesmo dos governadores estaduais, mas, em matéria político-administrativa são da maior importância as circunstâncias e conjunturas que condicionam o exercício do poder.

                   Por outro lado, somente um alto pacto nacional poderá prevenir e evitar um dos maiores riscos do federalismo, que é a distorção do poder regional, como já se deu no Brasil quando governadores irresponsáveis malbarataram os recursos financeiros dos Estados, levando à falência bancos e empresas que antes figuravam entre os patrimônios mais consolidados do País.

                   Foram, aliás, esses ilícitos desvios que obrigaram o presidente Fernando Henrique Cardoso a transferir, corajosamente, para a União a responsabilidade por situações calamitosas que comprometiam todo o nosso sistema federativo. Esse episódio jamais deveria ser esquecido, sendo lamentável apenas que não se tivesse conseguido apurar as devidas responsabilidades, aplicando-se as sanções da lei.

                   A organização federativa é a única compatível com países, como o nosso, de imenso território, sem o que se descamba para a perniciosa centralização unitária do poder, com olvido ou desprezo de imensas peculiaridades regionais. Todavia, o federalismo pressupõe o mais apurado senso de responsabilidade, com lideranças políticas que aliem aos conhecimentos econômico-financeiros e administrativos a consciência ética essencial à gestão da coisa pública.

                   Como penso ter demonstrado em meu recente livro Brasil, sociedade plural, é o pluralismo que condiciona nosso ser histórico, possibilitando a formação do “homem cordial” aberto a todas as experiências da cultura universal, bem como a integração das múltiplas diferenças territoriais, demográficas e raciais que caracterizam a coletividade brasileira.

                   Pluralismo e federalismo são objetivos complementares reclamados pelos países que pretendem realizar “a unidade na diversidade”, com distintos centros autônomos de poder interligados em uma composição harmônica de valores locais e nacionais.

                   Foi o que revelou a eleição realizada em outubro de 2002, ao prestigiar, a um só tempo, o futuro presidente da República, colocando-o acima de seu partido, e a quase totalidade das agremiações políticas que contrapuseram ao centralismo do PT os valores e interesses de cada região do País, dando uma estupenda lição de realismo federativo.

                                                                                              09/11/02